...e de repente estou outra vez na esplanada. A saia-calção cinzenta descobre-me o joelho quando cruzo as pernas. Combina com a cor do peluche, que sobressai contra a camisola branca. Ainda não o larguei desde que mo deste, há uma hora. Estou sentada à espera que voltes, nem me lembro bem de onde. Estranhamente, não me lembro exactamente quando foi que tudo isto aconteceu, mas lembro-me da roupa que tinha vestida. Talvez porque não me lembro de voltar a vestir aquela saia, nem sei bem porquê. Sei que estava um dia cinzento, mas não chovia - o meu casaco cinzento não é impermeável. Voltaste. Há conversas à nossa volta, estás a falar com o João, mas é tudo ruído de fundo. O cinzento do lápis destaca-se no branco da página, no poema em cima da mesa colorida. Escrevi-o esta manhã, sentada aqui a tomar café. Cheguei cedo, como de costume. Sentei-me a saborear o momento, os minutos de paz antes de o dia começar realmente, e o poema saiu. Pousei o lápis e fiquei a olhar o vazio, até que o teu andar característico o preencheu. Vi-te lá ao fundo, sorri, e fiquei a admirar-te enquanto caminhavas na minha direcção. Beijaste-me, e ia a abraçar-te quando puseste algo entre nós.
- Que é isto?
- Que é que te parece? É um embrulho.
- Sim, isso vejo eu. Mas...
- É para ti.
- Mas... eu não faço anos, e hoje não é nenhuma data especial...
- Pensava que já te tinha dito que não ligo a números e datas, ligo a momentos.
- Sim, quando eu liguei de mais... - Baixei o olhar, mas tive que o levantar quando me respondeste:
- Como estás a fazer agora, em vez de pegares nisto?
- OK, OK, afinal o que é?
- Abre e vê.
- Oh... Obrigada! É tão fofo... Amo-te, sabias?
- Bah, só dizes isso porque eu te dou peluches queridos.
Normalmente, responder-te-ia com o típico "Mongo!", mas optei por calar-te com um beijo abraçado, e ficámos os dois a sorrir, em pé ao lado da mesa.
Já sentados, olhaste o peluche:
- É para teres alguém para abraçar, quando não estou contigo.
Sentei-me ao teu colo - sempre fomos assim poupados em cadeiras - e ficámos assim os três. Os meus braços à volta do peluche apoiado no meu colo, e os teus por cima dos meus, à minha volta. Em silêncio, porque contigo o silêncio não é incómodo nem estranho, é partilhado... Até que alguém chegou, e começámos na conversa, e tu foste, e voltaste, e... reparei agora no poema, cinza no branco ainda em cima da mesa. Com a surpresa esqueci-me, ainda nem to dei! Agora no meio do resto do pessoal também não dá; fecho a capa para ninguém o ler sem querer. Encosto-me na cadeira, com as pernas a roçar as tuas. A conversa continua à minha volta, mas sem dar por isso desliguei... O meu corpo está presente, mas o pensamento está difuso numa nuvem de felicidade...
Aprecio o cinzento do dia, nem preto nem branco. Mais indefinido, mas mais complexo e mais rico por isso... Aperto o abraço ao peluche, e deixo-me estar, algures entre o passado e o futuro, no cinzento da mistura das memórias e das esperanças... E aprecio a beleza do cinzento da minha vida...
... Não quero abrir os olhos no negro da noite, e ver o branco do lençol onde não estás...