16 March 2008

Dias raros...

Estava um rapaz sentado na plataforma. Não dei por ele até descer do comboio, e nem sequer o consigo descrever. Acho que era moreno, devia ter p'raí a minha idade. Só sei que ao passar por ele a caminho das escadas senti que me seguia com os olhos. E sorri. As calças estão-me largas, assentam-me mal. A camisola não é nada de especial. Entre o vento e a humidade, o meu cabelo está decididamente num dia mau, e tenho olheiras quase até ao queixo, que me recuso a esconder com maquilhagem. E no entanto hoje sinto que consigo realmente fazer virar cabeças, e ser seguida por olhares apreciadores. Não sei porquê - não me aconteceu nada de especial - mas sinto que há qualquer coisa no meu andar, e no meu sorriso, hoje, que não costuma lá estar. A confiança transformada em charme, um certo "je ne sais quoi". Geralmente tenho consciência da minha aparência e das minhas limitações, e não é que hoje tenha ilusões... Simplesmente todas as regras parecem suspensas, por umas horas... por umas horas, os factos não contam, são destronados por esta "aura" que me envolve, e me alimenta o ego.

São raros, estes dias em que me sinto capaz de brilhar mais que as belezas convencionais. Não sei como surgem, nem porquê, nem quando, mas pouco me importa. Basta-me desfrutá-lo, como uma flor que desabrocha.

6 March 2008

Porto de abrigo

Senti-lhe o sorriso antes de o ver reflectido no monitor. Não sei como, mas sinto sempre quando entra em casa feliz. Talvez pelo passo leve, ou por ter vindo logo ter comigo, em vez de se demorar na entrada. Levantei os olhos do teclado, e lá estava a cara dela, a sorrir-me no reflexo. Ombros encaixados por cima dos meus, cabeça ao lado da minha, braços a unirem-se abaixo do meu pescoço, abraçou-me. Pôs-se ao meu lado, girou-me a cadeira até estar de frente para ela, e os olhos dançavam quando me disse:
- Não aconteceu nada.
Sorri. - Nem eu esperava que acontecesse. - E era verdade. Mas...
- Quis dizer-to na mesma. - Deu-me um abraço daqueles que são mais apertões do que abraços de facto, e reparou no ecrã.
- Ainda tens muito trabalho para fazer?
- Algum...
- OK... - Tinha-me virado outra vez para o computador, e estava outra vez atrás de mim, com os braços à minha volta, por cima dos meus ombros. Não sei porquê, adora pôr-se assim, quando está descontraída. Encostou a face ao de leve na minha cabeça, e deixou-se estar, em silêncio. Por uns instantes, limitei-me a sentir o peso dela nos meus ombros, a pele que me tocava a orelha, o calor da respiração... Quando abri os olhos, quebrou-se o encanto: o reflexo no ecrã tinha sido substituído pelas imagens que exigiam a minha atenção. Mas ela ainda ali estava, encostada a mim.
- Sabes que tenho que acabar isto...
- Eu sei, e não te quero impedir. Quanto mais depressa acabares, mais depressa te posso ter só para mim. Nem sequer quero distrair-te...
- Ah não?
- Não... - a voz dela tinha aquele trejeito meio-culpado de quando acaba de se aperceber do que estava a fazer. E a mão dela parou de vaguear pelo meu peito. Sorri. Respirei fundo (outra vez), inclinei a cabeça para trás e dei-lhe um beijo na bochecha. Apertei-lhe a mão, e assentei a minha no rato.
- OK, eu afasto-me da tentação...
Sabia que tinha de ser, e que ela não ia longe, mas... havia sempre uma parte de mim que queria continuar a sentir o toque dela...
- Já não devo demorar muito... P'raí meia hora. -Riu-se, e mesmo sem me virar podia adivinhar a expressão dela, a abanar a cabeça, sabendo que demoro sempre mais do que penso.

...
- Enganei-me... - Não me tinha apercebido que ela ainda ali estava. Virei-me e dei com ela encostada à ombreira da porta, ainda a sorrir.
- Então?
- Perguntou-me o que estaria a fazer se estivesse contigo, e eu respondi que estaria a pensar em trocar a mola do sofá. Afinal enganei-me. Se tivesse cá ficado, tinha ficado aqui assim, a ver-te trabalhar.
- Não estou a trabalhar muito...
- Pronto, OK, talvez ficar aqui não seja a melhor forma de não te distrair... Vou tomar banho, e depois trato do jantar, pode ser?
- OK...

"Não aconteceu nada"... Eu não estava preocupado com isso. Confiava nela. Mas soube-me bem ouvir aquelas palavras... talvez lá no fundo tivesse medo de ouvir as outras. Virei a minha atenção para o computador, para o trabalho que tinha para terminar. Não conseguia concentrar-me. Que raio, então agora é que tinha a cabeça às voltas? Voltei a olhar para o ecrã, e desta vez vi o meu reflexo. E apercebi-me que estava menos tenso, que me sentia mais leve. E que não era uma questão de confiança, mas de desilusão. E, desta vez, não tinha havido. Ela não tinha descido na minha consideração. Nem ele. E tinha voltado feliz... uma felicidade serena, calma. Agora que pensava nisso, antes de sair de manhã tinha-lhe notado um nervoso miudinho... Mas quando voltou...! A cara dela, os olhos, o andar... a maneira como se mexia, e como falava... Estava leve - como eu - radiante... e... tão bela...

Levantei-me num ápice, deixei um rasto de roupa do computador até à casa-de-banho, afastei a cortina e abracei-a através do vapor... Encostou-se a mim... Como é bom sentir que vai ser sempre assim...

4 March 2008

Ferro e fogo

Fazes as coisas mais lindas
por mim, e para mim
e sinto que não te retribuo tanto assim

Não tanto quanto devia,
nem tanto quanto mereces
No entanto, todavia
só queria que soubesses
que os poemas que escreveste,
e as canções que me gravaste,
são beijos que me deste,
são sorrisos que abraçaste.

Cada citação, cada palavra,
é mais uma pequena grande parte
do que me deixa marcada,
a querer apaixonar-te

Estás marcado em mim
a ferro quente das tuas mãos
e fogo da tua mente
Nada apaga uma marca assim:
não se vê, mas sei que sente,
que te sente sempre aqui

Por mais que viva,
e que tudo mude,
ninguém me tira o que já vivi,
ninguém me tira a ti.